Para esclarecer ainda mais, vamos considerar alguns extremos perigosos a que podemos ser levados, seja devido à imaturidade, falta de percepção espiritual, ou orgulho. Nestas considerações (como em qualquer outra circunstância) a opinião de servos de Deus, por mais fieis que tenham sido, servirá apenas de auxílio; toda a autoridade para nossas convicções deve residir unicamente na Palavra de Deus.
Eleição ou Livre-Arbítrio?
[Nota do autor, em Janeiro de 2014: Depois que escrevi este artigo, tive a oportunidade de aprender mais sobre o assunto da eleição. Uma exposição muito mais detalhada sobre a eleição nas Escrituras está disponível no livro “A fé dos eleitos de Deus”, publicado pela Editora Sã Doutrina.]Ao tratar de um assunto que tem gerado muita discussão e polêmica, queremos ser bastante cautelosos. Independentemente do que outros me ensinaram, ou do que a minha mente afirma, minha atitude deve ser: “O que a Bíblia afirma?”
Vamos por partes. Em primeiro lugar, será que a Bíblia afirma que Deus escolheu aqueles que são salvos? A resposta clara e simples é: “Sim”. Ele “nos elegeu nEle antes da fundação do mundo, … e nos predestinou para filhos” (Ef 1:4-5); Ele elegeu os cristãos em Tessalônica “desde o princípio para a salvação” (II Ts 2:13). Esta é a afirmação clara da Palavra de Deus: Ele é soberano, e tem escolhido os que serão salvos.
Em segundo lugar, porém, também devemos perguntar: a Bíblia afirma que a salvação está disponível para todo ser humano, e não só para alguns “escolhidos”? Novamente, a resposta é clara: “Sim”. Deus “quer que todos os homens se salvem” (I Tm 2:4). “A graça de Deus se há manifestado, trazendo salvação a todos os homens” (Tito 2:11). “Deus amou o mundo (não só os eleitos) de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que nEle crê não pereça” (Jo 3:16). Esta é a afirmação clara da Palavra de Deus: Ele oferece a salvação a todos os homens.
Até aqui, temos apenas citado o que a Bíblia afirma, sem tentar tirar muitas conclusões. Porque é quando tentamos explicar a mente infinita de Deus, segundo a nossa maneira de raciocinar, que caímos em erro, e podemos ser levados a alguns extremos:
a) “Bom”, nós raciocinamos, “se Deus elegeu os salvos, então o homem não é responsável. Quer ele queira ou não, Deus irá salvá-lo, até mesmo contra a vontade dele”. Sobre esta dedução, C. H. Mackintosh afirma: “A base está correta; a dedução está errada”. Deus elegeu os salvos (a Bíblia o afirma), mas Ele só salva aqueles que, tendo sido iluminados pelo Espírito (pois só Ele pode despertar um pecador), convertem-se a Deus. Ele quer que todos sejam salvos, mas nem todos serão salvos; ou seja, o pecador não é forçado a crer em Cristo. A Bíblia apresenta muitos exemplos de pessoas que Deus quis salvar, mas que rejeitaram Sua graça (Hb 6:1-6, Mt 23:37, Mc 10:21-22, etc.).
b) “Então a eleição deve ser baseada na presciência divina”, minha mente argumenta; “Deus sabia quem ia crer, então estes é que foram escolhidos”. Mas isto é quase o mesmo que acusar a Deus de hipocrisia (pois Ele diria que “escolheu”, quando apenas “previu”), ou então que Ele não é soberano (porque Sua eleição foi limitada pela fé dos homens — Ele só podia “escolher” os que iriam crer). Podemos emprestar as palavras do nosso irmão: “A base está correta; a dedução está errada”. Deus sabia quem ia crer, pois Ele é onisciente; mas se a Bíblia afirma que Ele escolheu, então devemos aceitar isto.
Irmãos, não podemos negar que Deus é soberano (Rm 9:18). Também não podemos crer num Evangelho limitado a um seleto grupo de escolhidos, pois Deus amou o mundo (Jo 3:16) e deseja que todos sejam salvos (I Tm 2:4). Enquanto não pudermos explicar esta aparente contradição, que saibamos pelo menos aceitar humildemente aquilo que Deus nos revelou. E que Ele nos preserve do extremismo, enfatizando uma destas verdades e negando a outra. Se eu sou salvo, é unicamente pela graça de Deus, sem qualquer mérito meu; se você for lançado no inferno, será unicamente pela sua incredulidade, sem qualquer culpa divina. O homem não é capaz de se salvar; Deus não é culpado em condená-lo. Que saibamos defender, com igual devoção, a soberania de Deus em escolher, e a responsabilidade do homem em aceitar.
Teoria ou Prática?
William Bunting, autor dum livrete intitulado Spiritual Balance, conta-nos uma história repleta de ensino. Dois irmãos, ambos com o desejo sincero de servir ao seu Senhor, estão com problemas. O primeiro é um profundo conhecedor da Bíblia; sabe explicar, detalhadamente, qualquer doutrina das Escrituras. Hermenêutica e homilética, ao invés de assustá-lo, são suas companheiras diárias. Sua única preocupação é com a doutrina, com a Igreja (afinal, ele sabe como tudo deve ser feito). Ele não admite o “zelo sem entendimento” (Rm 10:2) de alguns de seus irmãos; a compaixão pelas almas perdidas é um sentimento estranho a ele. Ele é como uma ducha fria quando o assunto é evangelismo pessoal, mas ninguém é mais disposto para o ensino. Podemos admirar seu conhecimento e sabedoria, mas gostaríamos de ver mais zelo prático e compaixão; ele é extremista, e nisto está errado.O outro, porém, é todo zelo. Sua única preocupação é pregar o Evangelho; seu grande alvo é trazer almas a Cristo. Ele não suporta as limitações implícitas na comunhão com os irmãos. Princípios bíblicos relacionados à comunhão e à maneira de servir não o preocupam. Sua motivação é anunciar a salvação para os pecadores, não importa como; ele quer ver conversões, e usa qualquer método para consegui-las. Podemos admirar seu zelo e compaixão pelos pecadores, mas gostaríamos de ver um respeito maior para com os princípios bíblicos; ele é extremista, e nisto está errado.
Ambos os extremos são perigosos; o primeiro produz frieza teórica e legalismo, e o segundo, indiferença quanto aos princípios bíblicos. O equilíbrio não está em menos de um ou do outro, mas em mais de ambos. Não queremos cristãos com menos conhecimento das Escrituras, ou com menos zelo pelo Evangelho; queremos, sim, cristãos cujas mentes estejam saturadas com as Escrituras, e cujos corações transbordem de compaixão.
Não seremos completos enquanto não manifestarmos a teoria e a prática. É necessário que, diariamente, nos sentemos aos pés do Senhor, como Maria, aprendendo dEle. Só então é que teremos algo para ensinar. Para uma completa assimilação, porém, também é preciso praticar aquilo que nos foi revelado. C. H. Mackintosh diz: “Você se regozija por saber que seus pecados estão perdoados? Sua alegria só será completa quando você falar deste amor aos outros. Alguma verdade da Palavra de Deus foi-lhe revelada? Ela só será plenamente compreendida quando você praticá-la”. Ele mostra que somos como uma represa, onde a água precisa entrar e sair. Se somente queremos distribuir, logo ficaremos com o coração vazio. Se só queremos receber, desprezando o serviço com o pretexto de aprender mais de Cristo, ficaremos apenas inchados com conhecimento.
É impossível estudar demais a Bíblia, desde que tiremos tempo para evangelizar e servir. É impossível servir demais, desde que tiremos tempo para aprender como servir. Evite o extremismo; procure o equilíbrio entre teoria (que é indispensável) e prática (que é indispensável!).
Ascetismo ou Liberalidade?
Eis outro assunto polêmico (mas onde é que o extremismo carnal não tem gerado polêmica?). Num extremo, um servo bem-intencionado começa a estabelecer regras e mandamentos quanto à conduta individual, procurando abster-se de toda a aparência do mal (I Ts 5:22). Ele vai além do que está escrito (veja I Co 4:6), e cria mandamentos onde a Bíblia se mantém em silêncio. O que usar, aonde ir, o que comer; tudo que, para ele, é inútil ou suspeito passa a ser taxado de “pecado”, e ele julga, no coração, seus irmãos “carnais”, que não seguem a mesma linha dura que ele.Ao seu lado, porém, vemos outro servo que, procurando estar “firme na liberdade com que Cristo nos libertou” (Gl 5:1), não se preocupa com qualquer coisa material. A maneira como o cristão deve se vestir, os lugares que ele deve frequentar, a linguagem que ele deve usar; estas coisas jamais o preocupam. “O que importa é o coração, a sinceridade”, diz ele. Seus versículos prediletos são Tito 1:15 e Gl 5:1, e ele despreza os irmãos “legalistas” que não vivem livres como ele.
Paulo, porém, inspirado pelo Espírito Santo, nos diz: “O que come não despreze o que não come; e o que não come, não julgue o que come” (Rm 14:3). Ah, irmãos, como é difícil encontrar este equilíbrio. Nós sempre nos desequilibramos, ou para um lado, ou para o outro. Às vezes, procurando ser santo como Ele é santo, começamos a acrescentar as nossas regras à Palavra de Deus, achando que a abstinência de alimentos (I Co 8:8), ou a santificação de dias (Gl 4:10-11), ou outras ordenanças humanas promovem a santificação (Cl 2:20-23); estas coisas “têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria … mas não são de valor algum senão para a santificação da carne” . Quando não caímos neste erro, pulamos para o outro extremo, esquecendo dos mandamentos quanto à pureza moral (I Co 6:18, etc.), quanto às más companhias (Tito 3:10, etc.), quanto ao vestuário indecente (I Tm 2:9, etc.), quanto ao mundanismo (Tiago 4:4, etc.); afirmamos que todas as coisas são lícitas, mas esquecemos que nem todas convém (I Co 6:12).
Irmãos, o ascetismo só tem “aparência de sabedoria”; na verdade, porém, só serve para a satisfação da carne, para engrandecer o nosso ego, gloriando-nos na “nossa” santidade. É um extremo, e portanto condenável. Por outro lado, o liberalismo é uma doutrina diabólica; só poderia ser defendida se você arrancasse, da sua Bíblia, todos os versículos que limitam nossa liberdade em Cristo (veja I Co 9:19).
E como achar o equilíbrio? Estude cuidadosamente Romanos cap. 14 e I Coríntios cap. 8. Ali, se não achamos o ponto exato de equilíbrio, encontramos alguns princípios fundamentais: jamais julgue seu irmão, jamais faça algo que não é proveniente da fé (algo sobre o qual você tem dúvidas), e jamais faça algo que irá ser um tropeço para um irmão mais fraco. E a liberdade, você pergunta? A liberdade cristã leva-nos a ser submissos, voluntaria e conscientemente, a uma vida de privações (leia I Cor 9). A liberdade, para o mundo, consiste em escravidão ao pecado; a liberdade, para o cristão, consiste em escravidão voluntária ao nosso sublime Senhor e Salvador.
Conclusão
Há muitas outras áreas na nossa vida em que podemos pecar pelo extremismo. Que estes poucos exemplos nos levem a examinar nossas vidas, convicções e atitudes, para ver se estamos realmente vivendo longe dos extremos perigosos a que Satanás procura nos levar, e seguindo o exemplo perfeito do Senhor Jesus Cristo.W. J. Watterson
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