Para os idólatras, “propiciação” é uma coisa; para Deus é algo bem diferente.
A palavra “propiciação” ocorre poucas vezes na Bíblia, e este fato tende a esconder a sua grande importância. Ela é usada duas vezes pelo apóstolo João na sua primeira carta (2:2; 4:10), e não aparece mais no Novo Testamento. Há, porém, duas ocorrências duma palavra cognata, que literalmente significa “propiciatório” (Rm 3:25; Hb 9:5). O verbo da mesma raiz ocorre somente em Lc 18:30, traduzido “tem misericórdia”, e Hb 2:17, traduzido “expiar”.
Um estudo destes versículos, no seu contexto, há de mostrar que Deus não usa a palavra “propiciação” exatamente como os gregos a usavam. Deus a usa num aspecto diferente e surpreendente.
Para os gregos pagãos, “propiciação” era aquilo que poderia aplacar a ira do seu deus e comprar o seu favor. Geralmente consideravam que seus deuses eram vingativos e cruéis, prontos a qualquer instante a punir rigorosamente qualquer pecado ou ação que lhes desagradasse. Consequentemente, quando pensavam ter desagradado o seu deus, procuravam fazer algo que pudesse aplacar sua ira e torná-lo favorável a eles. Esta propiciação poderia ser um sacrifício, uma dádiva, uma penitência, ou qualquer coisa semelhante.
A ideia bíblica de propiciação, porém, é diferente. O significado grego da palavra permanece inalterado, porém aparece um aspecto totalmente diferente. Devemos, primeiro, considerar seu significado grego.
A propiciação aplaca a ira de Deus
Deus está irado. Este é um fato ignorado pela vasta maioria em nossos dias. O Salmista escreveu: “Deus é um Juiz justo, um Deus que se ira todos os dias” (Sal. 7:11). Só no Velho Testamento há mais de vinte palavras diferentes usadas para descrever a ira de Deus, e estas palavras, em várias formas, ocorrem 580 vezes. Quem não tem sentido o horror terrível do dilúvio (Gn 6) ou de Sodoma e as cidades vizinhas (Gn 19) quando se ascendeu a ira do Senhor por causa do pecado daqueles povos? A dura realidade não consegue tocar mais a nossa consciência insensível, nem mesmo quando falamos dos milhões de seres humanos, desde anciãos até crianças, que pereceram no dilúvio, ou nos milhares que morreram queimados no fogo que caiu do céu, e até hoje continuam sofrendo a pena do fogo eterno (Judas 7).Mais uma referência entre as muitas do Velho Testamento será suficiente. Moisés estava lembrando o povo da sua infidelidade na viagem pelo deserto, e disse: “Lembra-te, e não te esqueças, de que muito provocaste à ira o Senhor teu Deus no deserto … pois em Horebe tanto provocaste à ira do Senhor, que se ascendeu contra vós para vos destruir … Também em Tabera, e em Massá, e em Quibrote-Hataavá provocastes muito a ira do Senhor” (Dt 9:7, 8, 22).
E o Novo Testamento não é diferente. O Senhor Jesus mesmo disse que a ira de Deus permanece sobre aquele que não crê (Jo 3:16). Ele contou parábolas que mostram algo do furor da Sua ira (Mt 25), e no último livro do Novo Testamento lemos da ira do Cordeiro, que há de encher de terror o coração dos habitantes da terra (Ap 6:12-17). Devemos destacar, neste aspecto, a carta aos Romanos, que é uma declaração do evangelho. Esta carta mostra logo no começo como a ira de Deus se revela dos céus contra toda a impiedade e injustiça dos homens (1:18), e logo em seguida nos conduz à grande verdade da propiciação (3:25).
Não devemos pensar, porém, que Deus é como os deuses da imaginação humana — vingativo, sem domínio próprio, explodindo em ira incontrolável. Pelo contrário, Deus é um Deus imutável, o Soberano e Todo-poderoso, cuja natureza santa e pura constantemente odeia o pecado, e exige a punição do pecador. Deus se revela como Aquele que é tão puro de olhos que não pode ver o mal (Hc 1:13).
Deus é imutável
O pagão procurava, por meio de uma propiciação, mudar a atitude do seu deus. Mas nós não podemos oferecer coisa alguma a Deus para mudar a Sua atitude em relação ao pecado e ao pecador. Deus é imutável. Sempre odiou, e sempre há de odiar, o pecado.O pecador do século vinte não é diferente do pagão do primeiro século. Se a consciência o acusa de algo que ele considera pecado, ele pensa em fazer algo para pagar. Alguns fazem penitências, outros caridade, outros promessas ou algo semelhante. Pensam que poderão fazer Deus mudar de atitude, aplacando a Sua ira e perdoando o pecado. Mas Deus não muda. Ele sempre odiou o pecado, e sempre o odiará. O pecador jamais poderá fazer uma propiciação.
É exatamente neste ponto que a Bíblia apresenta um aspecto novo e diferente da propiciação. Nunca lemos na Palavra de Deus de algo que o homem precisa fazer para que Deus lhe seja propício. Pelo contrário, vemos que apesar de odiar o pecado, Deus ama, e sempre amou, o pecador. Se há algo na natureza de Deus que odeia o pecado e tem que punir o pecador, há também na natureza de Deus algo que ama o pecador e quer perdoá-lo.
Por causa deste fato, a Bíblia diz que Deus fez propiciação. Ele, que ficou irado contra o pecado, Ele próprio fez a propiciação. “Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou a nós, e enviou Seu Filho para propiciação pelos nossos pecados” (I Jo 4:10). “Sendo justificados gratuitamente pela Sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus, ao Qual Deus propôs para propiciação pela fé no Seu sangue, para demonstrar a Sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da Sua justiça neste tempo presente, para que Ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3:24-25).
Note bem estes dois versículos. A iniciativa e a obra toda foi de Deus. João diz que Deus enviou Seu Filho para propiciação e Paulo diz que Deus propôs ou declarou Cristo Jesus para propiciação.
Jesus Cristo é a propiciação
“E Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (I Jo 2:2). Este versículo reitera a verdade já declarada nas citações anteriores, de que o Senhor Jesus Cristo é a propiciação. Não é simplesmente Seu sacrifício, mas Ele mesmo. Tendo oferecido um único sacrifício no Calvário, Ele satisfez as exigências da justiça divina, e agora está assentado à destra de Deus. Sendo Ele a propiciação, Deus pode agora justificar o pecador sem comprometer a Sua própria justiça — Ele é justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus.O Senhor Jesus, mediante a obra consumada na cruz, aplacou a ira de Deus em relação aos pecados daquele que tem fé nEle, e assim permite a manifestação do amor de Deus para conosco. A questão do pecado daquele que crê está eternamente resolvida, pois Ele é (não foi, mas é) a propiciação. Nenhuma condenação há para aqueles que estão em Cristo Jesus.
A propiciação pode beneficiar o mundo inteiro
Veja I Jo 2:2. É importante observar a distinção que este versículo faz entre nós, os salvos, e o mundo. Diz que Jesus Cristo é a propiciação pelos nossos pecados, mas quando fala do mundo, não repete a palavra “pecados”. Se Ele é a propiciação pelos pecados do mundo inteiro, então o mundo inteiro é aceito na presença de Deus; o mundo inteiro é salvo. Mas não é assim. As traduções para a língua portuguesa geralmente dão esta ideia, mas o texto grego indica que Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e também esta propiciação está disponível para o mundo inteiro. Somente aquele que crê poderá dizer: “Ele é a propiciação pelos meus pecados”. Jamais podemos dizer àquele que não crê, que o Senhor Jesus é a propiciação pelos pecados dele. Sobre este versículo W. Kelly escreveu: “O apóstolo diz que a propiciação de Cristo é não somente pelos nossos pecados, mas é para o mundo inteiro … Cristo é a propiciação, duma forma geral, em benefício do mundo inteiro, mas somente por ‘nossos pecados’.” W. E. Vine, no seu Dicionário do N.T., diz: “…provisão é feita para o mundo inteiro, de sorte que ninguém é, por predeterminação divina, excluído do alcance da misericórdia de Deus; a eficácia da propiciação, porém, torna-se realidade somente para aquele que crê”.Veja isto claramente afirmado nas Escrituras: “Ao Qual Deus propôs para propiciação pela fé no Seu sangue … para que Ele seja justo e justificador daqueles que tem fé em Jesus” (Rm 3:24-26).
R.E.W.
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